“No alto, como se fosse a arcada deste templo da volúpia, estala o riso, transe delicioso da felicidade, cúmulo extremo do gozo. Riso do gozo, gozo do riso. Incontestavelmente, este riso está além da brincadeira, da troça e do ridículo. As duas irmãs estendidas sobre a cama não riem de nada em concreto, o riso delas não tem objecto, é a expressão do ser que se regozija por ser. Tal como, ao gemer, aquele que tem uma dor se amarra ao segundo presente do seu corpo que sofre (e está, todo ele, fora do passado e do futuro), aquele que começa a rir com este riso de êxtase não tem memória nem desejo, porque lança o seu grito ao segundo presente do mundo e não quer conhecer nada além desse segundo.” “O domínio do mundo, como se sabe, é partilhado por anjos e demónios. No entanto, o bem do mundo não implica que os anjos tenham vantagem sobre os demónios (como eu pensava quando era criança), mas que os poderes de uns e outros estejam mais ou menos equilibrados. Se há no mundo demasiado sentido incontestável (o poder dos anjos), o homem sucumbe sob o seu peso. Se o mundo perde todo o significado (o reino dos demónios), também não se pode viver. As coisas, inesperadamente privadas do seu sentido suposto, do lugar que lhes é atribuído na ordem pretensa das coisas (…), provocam-nos o riso. Na origem, o riso é, portanto, do domínio do diabo. Tem algo de maléfico (as coisas revelam-se de repente diferentes daquilo por que se faziam passar) mas também tem em si uma parte de alívio benfazejo (as coisas são mais leves do que pareciam, deixam-nos viver mais livremente, cessam de nos oprimir sob a sua séria austeridade).” Milan Kundera In O livro do riso e do esquecimento
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Autora
Joana Fojo Ferreira Acompanhe as atualizações nas redes sociais
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