Em jeito de desafio numa viagem de carro, pedi ao meu companheiro sugestões para um novo texto aqui para o blog. A primeiro sugestão provocadora foi escrever como a psicoterapia não interessa a ninguém, seguida da qual sugeriu a reformulação de como a psicoterapia interessa a todos.
Ora, confesso que tenho tendencialmente uma postura de que a psicoterapia não interessa a toda a gente, no sentido de que nem todos se identificam com o registo psicoterapêutico, e um ponto muito importante num processo terapêutico é a motivação do paciente e confiança que o processo vai ser útil. Mas a ideia da psicoterapia interessar a todos não deixa de me fazer sentido segundo uma perspetiva diferente, a perspetiva de ser importante e interessar a todos o investimento na nossa saúde mental e os benefícios também de uma abordagem preventiva, em que se investe no nosso desenvolvimento e transformação pessoal através do auto-conhecimento e da exploração de formas alternativas saudáveis de estar e viver a vida. E de certa forma estas perspetivas são perfeitamente conciliáveis, a psicoterapia tem potencial para ser útil a toda a gente, desde que haja um interesse e uma disponibilidade em investir nela. Como é que a psicoterapia favorece a saúde mental? Quando a “doença mental” já está instalada, ou seja, quando há um problema psicológico identificado que justifica a procura de ajuda, a psicoterapia procura identificar os fatores que estão a contribuir para o problema, a dinâmica destes fatores que mantém o funcionamento problemático, o que é que está a impedir um funcionamento mais saudável, e a partir daqui explora e promove a experimentação de alternativas de funcionamento mais saudáveis, procurando identificar e mobilizar recursos existentes no campo/no sistema, internos e externos, que até ao momento não estavam acessíveis. Quando não há um problema psicológico claro, mas há um desejo de desenvolvimento e enriquecimento pessoal, a terapia pode ser útil, no sentido de favorecer o auto-conhecimento – o reconhecimento dos nossos padrões de funcionamento, a compreensão de como é que fazemos as escolhas que fazemos, o que é que nos move, como é que nos relacionamos com os outros e connosco mesmos. E esta forma de estar na vida mais consciente aumenta os nossos graus de liberdade de ação, permite-nos fazer escolhas mais conscientes e com maior potencial de trazer resultados benéficos à nossa vida, ajuda-nos a discriminar melhor o essencial do acessório, a escolher melhor as nossas lutas e as nossas “armas”, e isto tem um impacto potencialmente transformador nas nossas vidas, nas nossas relações e no mundo, já que cidadãos mais conscientes contribuem para um mundo melhor.
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Mais importante do que aquilo que tem é aquilo que é António Branco Vasco Habitualmente, num registo médico mais tradicional, quando temos um problema de saúde procuramos um diagnóstico que nos ajude a identificar o problema e nos oriente para o tratamento adequado. O problema, apesar de afectar o paciente, é visto como exterior a ele e o tratamento é dirigido ao problema e não à pessoa.
Num registo psicológico as coisas são um bocadinho diferentes, não deixa de fazer sentido procurar “diagnósticos”, mas são tendencialmente diferentes dos a que estamos habituados num registo médico; num registo psicológico muitas vezes parte do problema está relacionado com a nossa forma de ser e estar na vida, estamos portanto muito mais implicados nele, não é simplesmente algo exterior a nós do qual facilmente e recorrendo a meios exteriores nos possamos livrar, e consequentemente a intervenção é dirigida menos ao problema mais visível (os sintomas) e mais à pessoa que o manifesta. Enquanto muitas vezes num registo médico a ênfase é dada à identificação dos sintomas e o tratamento é a eles dirigido, apesar de progressivamente se contemplarem hábitos e estilos de vida do paciente, num registo psicológico, mais importante do que o sintoma que a pessoa tem é aquilo que a pessoa é, ou seja, o sintoma não é o problema mas o reflexo do problema e é na pessoa em si que podemos identificar tanto o problema como a solução. Num diagnóstico psicológico, além da identificação dos sintomas, entram então factores como o modo de funcionamento da pessoa, a sua história de vida e de desenvolvimento com realce para memórias marcantes ou por intensidade ou por frequência, e situações presentes que possam ter despoletado o problema ou tê-lo intensificado. Habituados que estamos ao registo médico mais tradicional, é frequentemente difícil sair dele e, por um lado, reconhecer a necessidade de identificar e trabalhar os factores psicológicos que estão a intervir na manifestação do problema e, por outro, reconhecer progressos, que muitas vezes começam a surgir antes do sintoma que o trouxe a terapia desaparecer. Dada a preponderância da pessoa sobre o sintoma, o trabalho psicoterapêutico passa muito por reconhecer de que forma é que a maneira como vivo a minha vida, fruto do que a minha história incutiu ou determinou, e influenciada pelas minhas circunstâncias actuais de vida, contribuiu para o surgimento ou exacerbação da sintomatologia. Esta consciência permite progressivamente abrir mão de velhos hábitos, questionar “heranças psicológicas” que nos foram incutidas como necessárias mas que nos apercebemos que no presente de nada nos servem e contribuem mais para o problema do que para a solução, e reconhecer necessidades fundamentais que precisamos procurar satisfazer para nos sentirmos bem connosco e com a nossa vida. Pode parecer estranho, mas são estas conquistas que permitem de facto que no final da linha os sintomas que apresentávamos já não tenham problemas para sinalizar e que gradualmente, quase sem nos darmos conta, deixem de estar presentes ou ter um impacto tão forte nas nossas vidas. No que a problemas de foro psicológico diz respeito, não procure a solução no sintoma, procure-a em si. Cuide de si! O processo terapêutico é um encontro entre duas pessoas. O paciente é o foco do trabalho, o terapeuta um catalisador da mudança terapêutica, mas não deixam de ser duas pessoas reais em interacção. E a autenticidade do terapeuta, o reconhecimento e partilha do que ele próprio vai sentindo na relação com o paciente, tende a facilitar o processo de reconhecimento e mudança deste último.
Por considerar que esta relação entre terapeuta e paciente é algo extremamente cúmplice e profundo, difícil de descrever, deixo-vos um cheirinho do que é a experiência do terapeuta, nas palavras de Carl Rogers, que no livro Tornar-se Pessoa soube retratá-la tão bem: “Para o terapeuta, é uma nova aventura que começa. Ele diz: "Aqui está esta outra pessoa, o meu paciente. Sinto um pouco de receio por ele, medo de penetrar nos seus pensamentos, tal como tenho medo de mergulhar nos meus. No entanto, ao escutá-lo, começo a sentir um certo respeito por ele, a sentir que somos próximos. Pressinto quão terrível se lhe afigura o seu universo, com que tensão procura controlá-lo. Gostaria de apreender os seus sentimentos e que ele soubesse que eu os compreendo. Gostaria que ele soubesse que estou perto dele no seu pequeno mundo compacto e apertado, capaz de olhar para esse mundo sem excessivo temor. Talvez eu o possa tornar menos temível. Gostaria que os meus sentimentos nesta relação fossem para ele tão evidentes e claros quanto possível, a fim de que ele os captasse como uma realidade discernível a que pode regressar sempre. Gostaria de acompanhá-lo nessa temerosa viagem ao interior de si mesmo, no seio do medo nele fixado, do ódio, do amor pelo qual ele nunca foi capaz de se deixar invadir. Reconheço que é uma viagem muito humana e imprevisível, tanto para mim como para ele e que eu me arrisco, sem mesmo saber que tenho medo, a fechar-me em mim próprio perante certos sentimentos que ele revela. Sei que isso me impõe limites na minha capacidade de ajudar. Torno-me consciente de que os meus próprios temores podem levá-lo a encarar-me como um intruso, como alguém indiferente e que deve rejeitar, como alguém que não compreende. Tento aceitar plenamente esses seus sentimentos, embora esperando também que os meus próprios sentimentos se revelem de maneira tão clara na sua realidade que, com o tempo, ele não possa deixar de se aperceber deles. Mas, sobretudo, pretendo que ele veja em mim uma pessoa real. Não tenho necessidade de perguntar a mim mesmo com constrangimento se os meus sentimentos são "terapêuticos". O que eu sou e aquilo que sinto pode perfeitamente servir de base para a terapia, se eu puder ser transparentemente o que sou e o que sinto nas minhas relações com ele. Então talvez ele possa ser aquilo que é, abertamente e sem receio".” O paciente, por seu lado, atravessa uma série de estados de consciência muito mais complexos, que nós apenas podemos sugerir. Esquematicamente, talvez os seus sentimentos assumam uma das seguintes formas: "Tenho medo dele. Preciso de ajuda, mas não sei se posso confiar nele. Talvez ele veja em mim coisas de que não tenho consciência - elementos terríveis e maus. Ele não parece estar a julgar-me, mas estou certo de que o faz. Não posso dizer-lhe o que realmente me preocupa, mas posso falar-lhe de algumas experiências passadas relacionadas com estas minhas preocupações. Ele parece que compreende estas experiências, logo, posso abrir-me um pouco mais com ele". "Mas agora que partilhei com ele um pouco deste meu lado mau, despreza-me. Tenho a certeza disso, mas é estranho que tal coisa não seja evidente. Será que por acaso o que lhe contei não é assim tão mau? Será possível que eu não tenha necessidade de me envergonhar de uma parte de mim mesmo? Já não tenho a impressão de que ele me despreze. Isto dá-me vontade de ir mais longe, na exploração de mim, de falar um pouco mais sobre mim. Vejo nele uma espécie de companheiro - parece realmente compreender-me". "Estou novamente cheio de medo, mas agora mais profundo. Não me apercebia de que, ao explorar os recantos incógnitos de mim mesmo iria sentir impressões que nunca tinha experimentado. Isso é muito estranho porque, num certo sentido, não são sentimentos novos. Pressinto que sempre lá estiveram. Mas parecem tão maus e inquietantes que eu nunca lhes tinha deixado livre curso. E agora, quando vivo esses sentimentos durante o tempo que passo junto dele, sinto vertigens, como se o meu universo se desmoronasse à minha volta. Antigamente, ele estava seguro e firme. Agora está abalado, permeável e vulnerável. Não é agradável sentir coisas de que sempre se teve receio até agora. A culpa é dele. É, no entanto, curioso que tenha desejo de voltar a vê-lo e que me sinta em maior segurança com ele". Já não sei quem sou, mas, por vezes, quando sinto realmente determinadas coisas, tenho a impressão, durante um momento, da minha solidez e da minha realidade. Sinto-me perturbado pelas contradições que descubro em mim mesmo - ajo de uma maneira e sinto de outra. É realmente desconcertante. Mas, outras vezes, é uma aventura sublime tentar descobrir quem sou. Por vezes dou por mim a julgar que talvez eu seja uma boa pessoa, se é que isto tem algum significado". "Começo a sentir muita satisfação, embora isso me seja muitas vezes difícil, em partilhar precisamente o que sinto em determinado momento. Sabem, ajuda realmente tentar ouvir-se a si mesmo, ouvir o que se passa no nosso íntimo. Já não tenho tanto medo do que se está a passar em mim. Sinto-me mais confiante. Durante as poucas horas que passo com ele, mergulho em mim mesmo para descobrir o que estou a sentir. É um trabalho árduo, mas eu quero saber. Durante a maior parte do tempo, tenho confiança nele e isso ajuda-me. Sinto-me vulnerável e inexperiente, mas sei que ele não me quer mal e acredito mesmo que se interessa por mim. Ocorre-me que, ao tentar mergulhar cada vez mais profundamente em mim mesmo, se eu pudesse captar o que se passa em mim e compreender o que isso significa, talvez soubesse quem sou e soubesse igualmente o que devo fazer. Pelo menos, isso acontece-me algumas vezes quando estou com ele". "Posso até dizer-lhe exactamente o que sinto em relação a ele num dado momento e, em vez de alterar violentamente as nossas relações, como eu antigamente receava, isso parece reforçá-las. Poder-se-á supor que serei capaz de viver igualmente os meus sentimentos com os outros? Talvez que isso também não seja muito perigoso". "Sinto-me a flutuar na corrente da vida, a ser eu mesmo numa grande aventura. Às vezes sou derrotado, outras vezes sou ferido, mas vou aprendendo que essas experiências não são fatais. Não sei exactamente quem sou, mas penso sentir as minhas reacções num determinado momento e elas parecem-me constituir uma base de comportamento, de momento a momento, muito aceitável. Talvez seja isso o que quer dizer "ser eu". Mas, evidentemente, isso só é possível porque me sinto em segurança nas minhas relações com o terapeuta. Ou talvez seja capaz de ser eu mesmo também fora dessas relações? Talvez! Talvez possa". O que acabei de relatar não sucede com muita rapidez. Pode levar anos. Também pode, por razões que não compreendo muito bem, não suceder nunca. Carl Rogers In Tornar-se Pessoa
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Autora
Joana Fojo Ferreira Acompanhe as atualizações nas redes sociais
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