No seguimento dos incêndios de Outubro do ano passado, escrevi um pequeno texto no facebook sobre o luto que me pediram para estender. Na altura escrevi: “Os incêndios destes dias deixaram novamente o país de luto. Há uma corrente geral de indignação, de revolta, e também de solidariedade. E o processo de luto comporta de facto todos estes elementos, permite-nos entrar em contacto e processar a zanga, a tristeza, o medo – todo um fluxo de emoções intensas e muitas vezes contraditórias; e contactar também com a nossa necessidade de suporte e (re)conexão connosco próprios, com os outros, e com o que é realmente importante na vida. E os processos de luto são importantes por isso mesmo, por nos proporcionarem um espaço e um tempo para processarmos todo o caos interior em que ficámos, acolhermos o apoio dos que nos rodeiam e empatizam com a nossa dor, e mobilizarmos os recursos necessários para as mudanças e adaptações que precisamos fazer. O luto é duro mas abre a porta à transformação e adaptação positiva. Que este luto nacional, e todos os nossos lutos, possam trazer mudanças importantes e sólidas.” Perder alguém que nos é importante é tão difícil, que tendemos a desvalorizar a importância do processo de luto, vendo-o muitas vezes como uma inevitabilidade que gostaríamos de dispensar. Vai muito ao encontro de uma tendência social geral para banir, abafar, pôr de parte o que é doloroso, procurando apenas contactar com o que traz satisfação e prazer. Esquecemos nesta hiper-desvalorização do doloroso, que ele tem uma função adaptativa, de processamento de uma perda, no caso do luto, e consequente favorecimento da adaptação e investimento numa nova realidade. Processar uma perda implica conectar com uma variedade de emoções associadas, entre a zanga, a tristeza, o medo,… e no processo de darmos algum sentido à experiência, passamos pelo choque, pela negação, pela revolta, pela apatia, pela aceitação, até chegarmos a um novo equilíbrio – é este processar da perda que permite a adaptação e investimento na nova realidade. Se não nos permitirmos este processar, a experiência de perda fica cristalizada dentro de nós, sem movimento, sem evolução, impedindo-nos de reformular e reinvestir na nossa vida. É também esta conexão connosco, com as nossas emoções, que nos permite reconhecer as nossas necessidades, e procurar o suporte de outros que nos possam ajudar a satisfazê-las, nomeadamente a necessidade de conforto, de ligação, de sentido. Neste processo de processamento da perda e reconexão connosco e com os que nos rodeiam, possibilitamos a mobilização dos recursos necessários para as mudanças e ajustes que sentimos necessidade ou queremos aproveitar para fazer. Porque ainda que o luto seja duro, também traz coisas importantes e positivas, ou pelo menos tem potencial para as trazer, se nos dermos a possibilidade de o viver. Entre algumas possibilidades de transformação positiva, podemos incluir, a título de exemplo, a reconexão ou reaproximação a pessoas de quem durante um tempo nos afastámos, ou o reconhecimento de competências e recursos que julgávamos não ter porque na presença do outro não sentimos necessidade de desenvolver, ou o investimento em projetos pessoais e/ou humanitários que foram ficando na gaveta e que agora sentimos novo ímpeto para retomar, ou a reformulação de valores, tornando-se mais claro o que é que realmente valorizamos na nossa vida. Neste sentido o meu apelo é para não se assustarem nem desvalorizarem o luto, e pelo contrário darem-se espaço para o viver e processar.
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Esta semana numa sessão surgiu a importância de escolhermos as nossas batalhas. Tendemos a achar que nos devíamos afirmar e defender em todas as situações, sem reconhecer os riscos desta postura. Quando luto em todas as frentes que se me deparam, disperso-me, desgasto-me, perco em eficácia, e frustro-me e desmoralizo com as demasiadas derrotas que vão inevitavelmente surgir. Por sua vez quando escolho as minhas batalhas, abrindo mão das que não são prioritárias, foco-me e invisto no meu objetivo, avalio melhor o que é necessário para ter sucesso e estabeleço a minha estratégia, torno-me mais eficaz, tenho menos derrotas a desmoralizar-me, venço mais, e aumento a minha auto-confiança e sentido de auto-eficácia. Por outro lado, muitas vezes a nossa necessidade de nos afirmarmos está assente numa necessidade de mudarmos o outro ou a sua perspetiva, e recriminamo-nos por não termos sido suficientemente firmes e eloquentes na nossa argumentação, acreditando que poderíamos mudar o outro (e vencer a nossa batalha) se o tivéssemos sido. Se é verdade que a segurança e eloquência de uma argumentação tem o potencial de tocar o outro e alterar a sua perspetiva ou a sua atitude, tendemos a desvalorizar o papel do recetor no sucesso desta demanda, e a realidade é que a nossa afirmação só toca o coração do outro se ele estiver disponível para ser tocado. O que isto implica é que a maior parte das batalhas que travamos caem em saco vazio ou escalam para uma luta de poder em que ambos os lados querem convencer o outro mas nenhum está disponível para ser convencido. No fim, gastámos uma quantidade imensa de energia numa demanda inútil e desmoralizadora. Na base deste fenómeno está a premissa bem conhecida dos psicólogos, que lutamos diariamente para incutir nos nossos pacientes (é a nossa batalha), de que não temos o poder de mudar os outros, apenas de nos mudarmos a nós próprios. Curiosamente, recentemente vi um vídeo da Esther Perel, uma terapeuta de casal, que vai um bocadinho além e diz qualquer coisa como – mudamos o outro mudando-nos a nós. E conciliando ambas as ideias – a maior parte das batalhas são infrutíferas, mudamos os outros mudando-nos a nós – tenho cada vez mais a sensação que tanto mais mudamos o outro quanto menos batalhamos para o mudar. Se eu mudar a minha postura combativa para uma postura mais aceitante do outro e/ou da minha incapacidade de o mudar, crio mais espaço, potencialmente, para o outro processar as suas coisas ao seu ritmo e direcionar os seus recursos para repensar a sua atitude mais do que se defender. Experimente, por exemplo, numa discussão em casal ou com um familiar ou um amigo, desculpar-se por aquilo em que magoou o outro, em vez de se queixar daquilo em que o outro o magoou. Vai notar que frequentemente o outro vai aceitar as suas desculpas e desculpar-se também por sua vez da dor que lhe causou a si. Já quando se leva a discussão como uma batalha, a tendência é ambos atacarem e nenhum se desculpar. Não se lance portanto impulsivamente a todas as lutas, faça escolhas, perceba que situações precisam que se afirme e lute, e quais beneficiam de baixar as armas e procurar acordos. No final saboreie os sucessos que estas escolhas lhe trarão. Tenho-me apercebido como compramos rótulos negativos sobre nos próprios, traços que nos apontam de forma muitas vezes abusiva e injusta, que acabamos por interiorizar e auto-definirmo-nos com eles. E esta parte da interiorização é a mais cruel para mim, e explico porquê: A partir do momento em que acreditamos no que nos vendem e passamos a definir-nos com esse rótulo, passamos também a apresentar-nos ao mundo muito de acordo com ele. Naturalmente que as pessoas reagem a nós de acordo com esta postura que adoptámos, e nós vamos reforçando a ideia que isto nos define mesmo, já que toda a gente no-lo reconhece e no-lo aponta. Vejamos um exemplo: Imaginemos alguém cujos cuidadores rotularam de teimoso, de tal forma que esta ideia foi-se enraizando na pessoa, e ela própria já se apresenta como tal, vê reflexos da sua teimosia em tudo, e torna-se menos capaz de distinguir teimosia (que tem uma conotação tendencialmente negativa) de por exemplo determinação, dedicação, investimento, persistência (com conotações bem mais positivas). Como esta pessoa se reconhece como teimosa, facilmente vai referir esta sua característica numa qualquer conversa ou apresentação, em vez de características que talvez sejam mais fiéis à pessoa em que entretanto se tornou, talvez de facto determinada, investida, persistente. E se é a teimosia que refere, é como teimosa que a vão ver, não como determinada e persistente. É duplamente cruel: por um lado nós próprios vemo-nos defeituosos onde talvez existam qualidades, e influenciamos os outros a verem-nos pelos mesmos olhos negativos. O antídoto que sugiro é procurar definir com clareza o que é que faz efetivamente de cada um de nós teimoso (por exemplo), num espectro contínuo entre dimensões mais positivas e mais negativas da teimosia, e por outro lado analisar bem as situações, perceber quando se está a ser teimoso de facto, ou quando há adjetivos que qualificariam muito melhor a nossa atitude naquele momento, pela positiva ou pela negativa. A ideia é aumentarmos o nosso vocabulário e sermos mais precisos nas nossas auto-avaliações, para podermos alterar a nossa postura quando nos apontam teimosia (por exemplo) com razão, mas também nos defendermos e reconhecermos as nossas qualidades e a nossa flexibilidade quando abusam na forma negativa e cristalizada como nos definem. “Estas são as regras do jogo” Tenho me apercebido com vários pacientes, e mesmo com pessoas da minha vida pessoal, e por vezes eu própria, que a ideia de colocar limites é muito assustadora, traz a ameaça da perda, de magoar o outro a um nível que destrua a relação.
Ainda que os nossos limites possam sim ser incompreendidos pelo outro e por isso fazerem-no sentir-se magoado, e até possam ser prelúdios de um fim se o outro não os souber acolher e respeitar, também é verdade que são os limites, as “regras do jogo”, que nos permitem interagir de uma forma positiva e construtiva, que dá estrutura, segurança, e favorece as relações. Ao refletir sobre esta dificuldade em colocarmos limites, tem-me surgido que parte dela poderá advir também de uma distorção ou um enviesamento que sinto que fazemos no a quem é que sentimos que os estamos a colocar. Geralmente o outro sente que lhe estamos a colocar limites a ele, e parece-me que frequentemente compramos esta ideia, quando na realidade estamos, ou deveríamos estar, a colocar limites a nós próprios, o que podendo parecer o mesmo é na realidade bastante diferente e a própria experiência psicológica de o fazer é diferente e em mais do que um sentido. Quando sinto que estou a colocar limites ao outro sinto que o estou a privar da liberdade dele, quando reconheço que estou a colocar limites a mim próprio percebo que estou a usar da minha liberdade para me proteger ou defender, que é bastante diferente. Imaginemos uma discussão exaltada e infrutífera com um familiar perante a qual digo “chega, não vou mais alimentar esta discussão hoje”; se achar que estou a colocar um limite ao outro, a minha experiência é tendencialmente bem mais negativa, e a meu ver incorreta, do que se reconhecer que não o estou a impedir a ele mas sim a colocar um limite a mim, sou eu que decido alimentar ou descontinuar a discussão naquele momento. Apesar de eu ver benefícios no perceber que é a nós, mais do que aos outros, que colocamos, ou deveríamos colocar, limites, este reconhecimento nem sempre é suficientemente motivador; colocarmo-nos limites a nós pode ser tão ou mais difícil do que supostamente os colocarmos aos outros; isto porque temos uma certa tendência para esperar que os outros cooperem e ressentimo-nos quando nos sentimos abusados, advogando que eles deveriam ser mais maduros, mais compreensivos, mais respeitadores, enfim; e esta postura de nos colocarmos limites a nós implica assumirmos que, apesar de podermos ficar magoados ou desiludidos com as atitudes do outro, é nossa responsabilidade acima de tudo tomarmos uma atitude afirmativa e auto-protetora perante os potenciais abusos dele e mantermo-nos fiéis às nossas decisões. Os limites mais produtivos, ainda que talvez mais difíceis, precisamente pela responsabilidade que acarretam, passam por:
Tudo isto aguentando a angústia e o medo que a situação também nos causa a nós (e lá está, essencialmente medo da perda do outro ou do seu amor). Parece difícil? Talvez porque realmente o seja, mas quando temos a coragem de nos responsabilizarmos e tomarmos as rédeas da nossa vida, colocando-nos os limites que isso implica, tendemos a acabar por nos sentir mais seguros e satisfeitos nas nossas relações, porque contribuímos para elas se tornarem menos caóticas, menos pesadas, mais saudáveis, mais seguras. Socialmente parece haver uma expectativa de evoluirmos linearmente ao longo do tempo; vendem-nos a ideia de que é suposto estarmos sempre a crescer e a melhorar. Na prática isto não acontece, não evoluímos ou melhoramos de forma linear, temos altos e baixos, tendemos a oscilar. O problema é que, perante a expectativa, irrealista e eu diria mesmo que errada, de que o saudável seria melhorarmos de forma linear, quando vemos alguém mais em baixo, depois de um período em que se tenha sentido melhor, conotamos este “baixo” como um retrocesso, julgamos que a pessoa está a piorar, e explicita ou implicitamente passamos-lhe esta mensagem, mostramo-nos preocupados e desanimados com o seu estado de saúde mental. Por sua vez, os que voltam a sentir-se em baixo, pelas suas próprias expectativas e o desânimo que lêem nos outros, sentem uma grande frustração e desmoralização, sentem-se a falhar; e aí sim, com o acréscimo de toda a culpa associada, acabam por estagnar ou cristalizar cada vez mais nos seus esquemas problemáticos e desadaptativos; acabam por desistir de lutar. Na realidade, evoluímos sim, mas num movimento ondulatório, como o que ilustro na figura abaixo: Se analisarmos com cuidado, percebemos que temos altos e baixos sim, mas que também os baixos estão em processo de melhoria, tendem a ser cada vez menos baixos, oscilamos mas num movimento ascendente.
Se soubermos naturalizar estes baixos e reconhecer e reforçar o progresso que está a ser feito, favorecemos o ânimo e a coragem das pessoas para continuarem a lutar e a crescer, e prevenimos uma desmoralização desnecessária que pode bloquear ou atrasar este processo. Na realidade, mesmo o conceito de evolução linear em termos estatísticos, é uma mera redução dos pontos oscilantes ao longo do tempo à sua tendência de crescimento – a tendência é uma evolução linear positiva, mas o processo em si é oscilante. Não me querendo alongar em demasia, gostaria ainda de acrescentar uma consideração importante, é que do meu ponto de vista, na realidade esta evolução em onda ascendente é mais produtiva do que seria uma evolução estritamente linear. Esta evolução ondulatória permite-nos ensaiar sucessivamente formas mais eficazes de lidarmos com os “baixos” e consolidar as nossas conquistas perante os desafios mais dolorosos. Numa evolução estritamente linear não teríamos a possibilidade de perceber e treinar como lidar com os “baixos”, e num futuro em que eles voltassem a surgir, estaríamos menos capazes de lhes reagirmos de forma positiva e eficaz. É na possibilidade de treinarmos como lidar com os “baixos”, que a diferença para os altos vai diminuindo e nos tornamos mais sólidos e consistentes na capacidade de lidar positiva e eficazmente com os desafios que a vida nos coloca. Não desmoralize com os seus "baixos" nem com os dos outros, acolha-os e estimule que sejam aproveitados para continuar a crescer. (uma reflexão a partir do Lobo das Estepes de Hermann Hesse)
Recentemente li o “Lobo das Estepes” do Hermann Hesse, que retrata com uma profundidade e uma clareza a sensação de dualidade que vários pacientes trazem entre um lado humano e um lado supostamente de animal bravio e indomável – o lado lobo. Esta dualidade, em que frequentemente a sensação interior é de o lobo suplantar tendencialmente o humano, é vivida com grande angústia, com uma grande falta de amor-próprio e de amor à vida. Nesta dualidade, cada um dos lados condena e rejeita o outro, nenhum realmente se compreende, portanto quando surge o lado humano, mais social e delicado, o lado lobo arreganha os dentes, ridiculariza, destrói a experiência de envolvimento; e quando surge o lado lobo, que se zanga e se ressente ferozmente das injustiças a que se sente sujeito, o lado humano vem e julga, critica, invalida a experiência interior. É a tensão entre não conseguir ser feliz nem como humano nem como lobo, já que se por um lado se rejeitam um ao outro, também não deixam nenhum viver sem a presença crítica do outro. A sensação é de alienação, de serem lobos incapazes de viver em contexto humano, mas suficientemente humanizados para também não se conseguirem suportar enquanto lobos. Esta dualidade “condena” a uma incapacidade de sentir satisfação consigo e com a vida, a inteligência e o entendimento das coisas não se faz acompanhar da capacidade de se experimentar, de se viver, com menos seriedade e mais leveza. Esta condenação é fruto por um lado desta crítica, desta falta de aceitação do que se é e das ambiguidades do que se sente, e por outro desta categorização dicotómica entre bom e mau, humano e selvagem, que não contempla variações positivas do lobo e negativas do humano, nem outros lados, outras facetas, ou que, quando as reconhece, procura imediatamente encaixá-las numa destas duas possibilidades – bom/humano ou mau/selvagem, e perde o poder enriquecedor e transformador de nos contemplarmos na nossa totalidade e podermos brincar com os nossos vários lados, organizarmo-nos e regorganizarmo-nos a cada momento como nos aprouver, como a cada instante nos fizer sentido e nos quisermos experimentar. Como tão bem nos mostra Hermann Hesse no livro, a capacidade de retirar satisfação de nós próprios e da vida implica recuperarmos e alimentarmos o nosso lado curioso e brincalhão, em que cada um dos nossos lados (bem mais do que dois) em vez de julgar os restantes vai curioso tentar percebê-los e, em jeito de brincadeira, vai-se explorando em combinação com eles, integrando as várias peças num todo mais coerente mas também flexível, com espaço para a cada momento retirar umas, integrar outras, transformar outras ainda. Citando Hermann Hesse no livro: “Isto é a arte da vida (…) Poderá de futuro conferir forma e animação ao jogo da sua vida, emaranhá-lo e enriquecê-lo como bem lhe aprouver, tudo está na sua mão”. Às vezes ficamos tão presos nas nossas cabeças que nos esquecemos de escutar e usar o nosso corpo, de nos descobrirmos e nos expressarmos através do movimento que ele nos permite.
E este equilíbrio entre o pensar e o sentir/agir é essencial para uma vivência mais integrada e saudável de nós mesmos, tanto nas relações connosco próprios como nas relações com os outros. O ideal é o corpo receber informação/estímulos (sentir), que o cérebro ajuda a dar significado/coerência (pensar), para novamente o corpo entrar em acção e responder de volta para o mundo (agir). Se esta cadeia é interrompida ou rigidificada nalgum ponto, passamos a ficar estagnados, bloqueados, a vida deixa de fluir. É essencial primeiro estarmos atentos ao nosso corpo, percebermos como nos sentimos face às coisas; para depois pensar sobre o que estamos a sentir, e é muito importante que o pensamento seja guiado pela emoção, se for apenas no abstracto ou em negação ao que estamos a sentir vai ser improdutivo; para depois de dado significado, o corpo voltar novamente à acção, desta vez para enviar mensagens para o exterior, em resposta ao estímulo percepcionado. Dançar, por exemplo, é uma excelente forma de treinar esta cadeia. Experimente o seguinte exercício: De pé, ponha uma música do seu agrado a tocar, apure os seus sentidos e preste atenção ao seu corpo, como é que a música mexe com ele, que sensações desperta… Deixe-se ficar um tempo aqui, e experimente depois incluir a cabeça neste processo, mas não é um pensar abstracto, desconectado do corpo, é simplesmente estabelecer ligações, perceber para onde é que estas sensações o levam, que memórias e imagens lhe despertam, é dar significado/nome/sentido a estas sensações e emoções… E daqui comece a mexer o seu corpo como ele pede para ser mexido, expresse estas sensações e emoções de que se apercebeu ao dar-lhe atenção, mexa-o ao som da música e no fundo ao som de si, é a si que se está a expressar. Deixo-o então com a sua música e com o seu corpo, liberte-se e deixe-se fluir. Tanto nas relações amorosas como nas relações de amizade, surge frequentemente um problema, muitas vezes subtil e pouco consciente, sobre o papel que cada um desempenha na relação no que toca cuidar e/ou ser cuidado.
Muitas vezes sem querer e sem nos apercebermos, cristalizamo-nos num destes papéis – ou somos os cuidadores, ou somos os que recebem cuidado; em vez de fluirmos entre estes dois polos e termos relações equilibradas entre o dar e o receber. Vou debruçar-me especificamente naqueles de nós que temos tendência a adoptar a postura do cuidador. Quais são as características internas do típico cuidador? O típico cuidador tem geralmente, ainda que de forma inconsciente, uma ideia de que só cuidando dos outros e procurando ir ao encontro das necessidades dos outros é que pode aspirar a receber o amor deles. Há uma postura de dar para se sentir merecedor de receber. No entanto, sem querer e sem se aperceber, tendencialmente não sabe receber e, ou fica muito desconfortável e a sentir-se muito vulnerável quando alguém tenta inverter os papéis e devolver-lhe cuidado, ou adopta uma postura de auto-suficiência, que passa a mensagem “não preciso de nada, eu resolvo-mo, nem tentes cuidar de mim”. Quais são as consequências da rigidificação neste papel? Por um lado, habitua os outros ao seu cuidado, cria uma imagem de cuidador que é difícil desfazer, tanto aos olhos dos outros, como no próprio reportório. Com esta imagem de cuidador, sempre disponível para o outro, passa também a imagem que está sempre bem ou que se resolve com facilidade, que é auto-suficiente, sabe bem cuidar de si. Isto acaba por trazer uma sensação imensa de solidão, de desamparo, já que é muito o cuidado que recebemos, e que nos permitimos receber, que nos faz sentir acompanhados, ligados aos outros, e confiantes em nós mesmos. Por outro lado, abre as portas ao ressentimento, porque por maior que seja a sensação de auto-suficiência, somos todos seres eminentemente sociais e relacionais, nalgum momento vai sentir com força a mágoa de não receber na mesma medida em que dá, sem se aperceber que há um lado em que foi o próprio que criou esta imagem de cuidador auto-suficiente, e que reforça esta ideia pela dificuldade em receber e alimentar o cuidado dos outros para consigo. Sair deste estilo não costuma ser fácil, implica um trabalho muitas vezes longo de ir tentando equilibrar o dar e o receber – aprender a dar menos, aprender a receber mais, e acreditar que se merece receber e que se vai receber, assim que se disponibilizar verdadeiramente para tal. Não há problema algum em cuidarmos dos outros, desde que nos saibamos também deixar cuidar. Há uns tempos, no seguimento de ter escrito o texto Sobre a ansiedade, pediram-me para escrever mais especificamente sobre o medo de falar em público, que é uma forma de ansiedade social.
O que é a ansiedade social? A ansiedade social é um padrão persistente de desconforto e nervosismo acentuado em contextos sociais; podem ser contextos de interacção, ou contextos de desempenho, como o caso de falar em público. A emoção comumente associada à ansiedade social é a vergonha, o medo de ser ridículo ou desadequado, e de ser julgado e criticado pelos outros. A pessoa com ansiedade social tende a ter uma imagem de si como socialmente desadequada ou sem valor, como uma fraude que não merece a atenção ou o reconhecimento dos outros. De onde vem e como é que é mantida a ansiedade social? Esta sensibilidade extrema à crítica e a ser visto como desadequado ou impostor, advém tipicamente de na infância ter recebido mensagens críticas de estar a ser vergonhoso ou não estar a ser suficientemente bom; mensagens estas que podem ter sido mais explícitas ou mais implícitas. A pessoa cria portanto um modelo de si como alguém defeituoso ou inferior e esta imagem prolonga-se pela sua vida e é frequentemente reforçada pela própria pessoa sem que ela se aperceba disso. O que geralmente acontece é que, para lidar com esta ansiedade, desenvolve estratégias que aliviam a curto-prazo, mas que alimentam a imagem negativa de si a médio-longo prazo. Por exemplo, a pessoa tende a preocupar-se excessivamente com o seu desempenho, no sentido de evitar falhas que possam ser julgadas pelos outros, e neste processo perde o contacto com a sua experiência no momento e o conteúdo do que quer apresentar, no caso de uma comunicação em público, e passa a observar-se de fora, a focar-se na imagem que estará a passar aos outros. Isto naturalmente desconcentra-a da tarefa em si e pode inclusivamente prejudicá-la, reforçando a ideia de que se é incompetente ou inferior. Outro exemplo é o processo de evitamento: face ao medo de falar em público, evita fazê-lo, mas ao evitá-lo perde a possibilidade de desconfirmar a sua crença negativa de si e reforça a ideia de que não é suficientemente competente. Ainda um outro, a pessoa com ansiedade social tende a tentar passar a melhor imagem possível de si, com a ideia de que qualquer falha, por pequena que seja, vai ser alvo de crítica e humilhação; mas ao não expor os seus lados mais frágeis e vulneráveis fica sempre com a sensação de estar a ser uma fraude, e à custa disso tem dificuldade em acreditar e integrar o feedback positivo dos outros, sentindo que eles só têm uma boa imagem de si porque não a conhecem verdadeiramente. Como é que se quebra o ciclo de ansiedade social? Sucintamente há dois focos, há o foco dos comportamentos que contribuem para manter a ansiedade social, e há o foco das experiências precoces, na infância, que contribuíram para esta vergonha excessiva e esta imagem de si como defeituoso e inferior. Para o primeiro foco, é preciso desafiar estes comportamentos: refocar na tarefa em vez de se estar a focar exageradamente em si, combater o evitamento e expor-se de facto às situações temidas, e aprender a vulnerabilizar-se perante os outros, percebendo que todos temos defeitos e não nos tornamos obrigatoriamente alvo de crítica e ridicularização por eles. Para o segundo foco, o trabalho é muito de descobrir internamente o que o tornou tão vulnerável à crítica e à ridicularização, que experiências contribuíram para esta imagem tão negativa de si, no sentido de poder desfazer esta imagem e contribuir para um maior à vontade e maior satisfação nas interacções e desempenhos sociais. Naturalmente que este trabalho não é fácil sozinho, caso sinta que a ansiedade social prejudica seriamente a sua vida pessoal ou profissional e a sua satisfação com os seus relacionamentos e interacções, invista num trabalho psicológico que o possa ajudar a recuperar ou a descobrir uma forma mais tranquila e satisfatória de estar consigo próprio e com os outros. Só se deprime quem não se deixa entristecer. António Branco Vasco Do meu ponto de vista, a depressão equivale a um processo de desligamento de si próprio e do mundo; simbolicamente é um fechar a porta, um deixar de acreditar, um sentir que não vale mais a pena lutar.
Neste sentido, nas origens da depressão, especialmente a mais debilitante e crónica, tendem a existir experiências dolorosas prolongadas ou muito repetidas, e esforços de resolução dos problemas fracassados, ou respostas frequentes de invalidação e desqualificação dos outros, que deixam a pessoa a sentir-se impotente ou incompetente e muito desesperançada e desamparada. A certa altura, aceder a estas experiências ou memórias dolorosas, sem conseguir recuperar ou mobilizar outras mais positivas e vitalizantes, torna-se demasiado doloroso e angustiante, e é como se se escolhesse então, ainda que de forma inconsciente, deixar de sentir, cortar o contacto consigo e com o mundo, deixar de “viver”. Em terapia, o que procuramos fazer perante estes cenários, é ajudar a pessoa a reabrir-se à experiência, a recuperar o contacto consigo e com o mundo, num ambiente seguro e protector, que favoreça que ela se permita voltar a sentir, e ao mesmo tempo aceder e activar recursos internos ou externos, que a ajudem a dar um sentido mais produtivo e menos incapacitante a estas experiências dolorosas passadas ou presentes. O objectivo é também combater a sensação de desamparo e ajudá-la a perceber que, ainda que não possa apagar o seu passado, não precisa continuar a viver nele no presente e pode construir, mesmo a partir dele, uma narrativa diferente para o seu futuro. Talvez lhe pareça estranha a frase “Só se deprime quem não se deixa entristecer”, mas na realidade, ao permitir-se entristecer, ou sentir qualquer uma das suas emoções mais dolorosas, num ambiente seguro e validante, está a abrir a porta para processar e arrumar as suas experiências dolorosas e integrar na sua vivência emoções e experiências positivas que o ajudam a dar um sentido menos drástico e menos incapacitante às negativas. Não feche a porta a si próprio, permita-se sentir! |
Autora
Joana Fojo Ferreira Acompanhe as atualizações nas redes sociais
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