Tenho-me apercebido como compramos rótulos negativos sobre nos próprios, traços que nos apontam de forma muitas vezes abusiva e injusta, que acabamos por interiorizar e auto-definirmo-nos com eles. E esta parte da interiorização é a mais cruel para mim, e explico porquê: A partir do momento em que acreditamos no que nos vendem e passamos a definir-nos com esse rótulo, passamos também a apresentar-nos ao mundo muito de acordo com ele. Naturalmente que as pessoas reagem a nós de acordo com esta postura que adoptámos, e nós vamos reforçando a ideia que isto nos define mesmo, já que toda a gente no-lo reconhece e no-lo aponta. Vejamos um exemplo: Imaginemos alguém cujos cuidadores rotularam de teimoso, de tal forma que esta ideia foi-se enraizando na pessoa, e ela própria já se apresenta como tal, vê reflexos da sua teimosia em tudo, e torna-se menos capaz de distinguir teimosia (que tem uma conotação tendencialmente negativa) de por exemplo determinação, dedicação, investimento, persistência (com conotações bem mais positivas). Como esta pessoa se reconhece como teimosa, facilmente vai referir esta sua característica numa qualquer conversa ou apresentação, em vez de características que talvez sejam mais fiéis à pessoa em que entretanto se tornou, talvez de facto determinada, investida, persistente. E se é a teimosia que refere, é como teimosa que a vão ver, não como determinada e persistente. É duplamente cruel: por um lado nós próprios vemo-nos defeituosos onde talvez existam qualidades, e influenciamos os outros a verem-nos pelos mesmos olhos negativos. O antídoto que sugiro é procurar definir com clareza o que é que faz efetivamente de cada um de nós teimoso (por exemplo), num espectro contínuo entre dimensões mais positivas e mais negativas da teimosia, e por outro lado analisar bem as situações, perceber quando se está a ser teimoso de facto, ou quando há adjetivos que qualificariam muito melhor a nossa atitude naquele momento, pela positiva ou pela negativa. A ideia é aumentarmos o nosso vocabulário e sermos mais precisos nas nossas auto-avaliações, para podermos alterar a nossa postura quando nos apontam teimosia (por exemplo) com razão, mas também nos defendermos e reconhecermos as nossas qualidades e a nossa flexibilidade quando abusam na forma negativa e cristalizada como nos definem.
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“Estas são as regras do jogo” Tenho me apercebido com vários pacientes, e mesmo com pessoas da minha vida pessoal, e por vezes eu própria, que a ideia de colocar limites é muito assustadora, traz a ameaça da perda, de magoar o outro a um nível que destrua a relação.
Ainda que os nossos limites possam sim ser incompreendidos pelo outro e por isso fazerem-no sentir-se magoado, e até possam ser prelúdios de um fim se o outro não os souber acolher e respeitar, também é verdade que são os limites, as “regras do jogo”, que nos permitem interagir de uma forma positiva e construtiva, que dá estrutura, segurança, e favorece as relações. Ao refletir sobre esta dificuldade em colocarmos limites, tem-me surgido que parte dela poderá advir também de uma distorção ou um enviesamento que sinto que fazemos no a quem é que sentimos que os estamos a colocar. Geralmente o outro sente que lhe estamos a colocar limites a ele, e parece-me que frequentemente compramos esta ideia, quando na realidade estamos, ou deveríamos estar, a colocar limites a nós próprios, o que podendo parecer o mesmo é na realidade bastante diferente e a própria experiência psicológica de o fazer é diferente e em mais do que um sentido. Quando sinto que estou a colocar limites ao outro sinto que o estou a privar da liberdade dele, quando reconheço que estou a colocar limites a mim próprio percebo que estou a usar da minha liberdade para me proteger ou defender, que é bastante diferente. Imaginemos uma discussão exaltada e infrutífera com um familiar perante a qual digo “chega, não vou mais alimentar esta discussão hoje”; se achar que estou a colocar um limite ao outro, a minha experiência é tendencialmente bem mais negativa, e a meu ver incorreta, do que se reconhecer que não o estou a impedir a ele mas sim a colocar um limite a mim, sou eu que decido alimentar ou descontinuar a discussão naquele momento. Apesar de eu ver benefícios no perceber que é a nós, mais do que aos outros, que colocamos, ou deveríamos colocar, limites, este reconhecimento nem sempre é suficientemente motivador; colocarmo-nos limites a nós pode ser tão ou mais difícil do que supostamente os colocarmos aos outros; isto porque temos uma certa tendência para esperar que os outros cooperem e ressentimo-nos quando nos sentimos abusados, advogando que eles deveriam ser mais maduros, mais compreensivos, mais respeitadores, enfim; e esta postura de nos colocarmos limites a nós implica assumirmos que, apesar de podermos ficar magoados ou desiludidos com as atitudes do outro, é nossa responsabilidade acima de tudo tomarmos uma atitude afirmativa e auto-protetora perante os potenciais abusos dele e mantermo-nos fiéis às nossas decisões. Os limites mais produtivos, ainda que talvez mais difíceis, precisamente pela responsabilidade que acarretam, passam por:
Tudo isto aguentando a angústia e o medo que a situação também nos causa a nós (e lá está, essencialmente medo da perda do outro ou do seu amor). Parece difícil? Talvez porque realmente o seja, mas quando temos a coragem de nos responsabilizarmos e tomarmos as rédeas da nossa vida, colocando-nos os limites que isso implica, tendemos a acabar por nos sentir mais seguros e satisfeitos nas nossas relações, porque contribuímos para elas se tornarem menos caóticas, menos pesadas, mais saudáveis, mais seguras. Há uns tempos mais do que um paciente meu recomendou-me o livro “Amor e desejo na relação conjugal” da Esther Perel, que pude comprovar que é um livro que vale muito a pena ler.
Entre vários aspetos importantes abordados, quero hoje salientar duas ideias, interligadas, que a autora apresenta, e cujo reconhecimento é extremamente importante num casal. São elas:
A Esther explica que “aquilo que faz com que seja tão difícil conservar o desejo [numa relação conjugal] ao longo do tempo é o facto de isso exigir a reconciliação de duas forças opostas: liberdade e compromisso”. A liberdade por vezes assusta e traz o medo do abandono, o compromisso por vezes sufoca e traz o medo da auto-aniquilação. Frequentemente os problemas conjugais surgem associados a uma discrepância entre as necessidades de cada parceiro, um a sentir necessidade de mais compromisso, o outro de mais liberdade. O que é que contribui para a dificuldade em gerir esta dualidade nas relações? É aqui que entram frequentemente as marcas das nossas relações de infância, o tipo de vinculação que estabelecemos com os nossos cuidadores. Diz a Esther: “O grau em que as nossas relações de infância nutrem ou obstruem as duas necessidades antagónicas [necessidade de comunhão e de independência] irá determinar as vulnerabilidades que trazemos para as relações adultas: aquilo que mais queremos e aquilo que mais receamos.” “A capacidade de nos afastarmos dos nossos entes amados ao mesmo tempo que confiamos na sua constância assenta na segurança dos laços de infância. Quanto mais confiamos, mais longe nos conseguimos aventurar”. Já quando as vinculações que estabelecemos foram inseguras, sem equilíbrio entre a satisfação das necessidades de proximidade e de autonomia, tendemos a desenvolver ou uma necessidade imensa de liberdade e uma sensação de sufoco quando numa relação de compromisso (fruto tendencialmente de relações com cuidadores muito asfixiantes), ou uma necessidade imensa de compromisso e intimidade e uma sensação de abandono perante os movimentos de independência do outro (fruto tendencialmente de cuidadores mais ausentes e abandónicos). Como é que se gere esta dualidade entre necessidade de comunhão e de independência numa relação? A autora diz-nos: “É no reconhecimento e na gestão da dualidade que reside a sobrevivência do desejo”. “A intimidade erótica é um ato de generosidade e de egocentrismo, de dar e de receber. Temos de conseguir entrar no corpo ou no espaço erótico do outro, sem o terror de sermos engolidos e nos perdermos. Ao mesmo tempo, temos de conseguir entrar dentro de nós, rendermo-nos à absorção em nós mesmos na presença do outro, acreditando que o outro ainda lá estará quando regressarmos, que não se irá sentir rejeitado pela nossa ausência temporária. Temos de conseguir ligar-nos ao outro sem o terror da aniquilação, e temos de conseguir vivenciar a distância sem o terror do abandono.” “Harmonizar a vida doméstica com a vida erótica é um ato de equilíbrio delicado que, na melhor das hipóteses, só conseguimos realizar de forma intermitente. Exige que se conheça o outro, ao mesmo tempo que se reconhece o seu mistério persistente; que se crie segurança, ao mesmo tempo que se permanece aberto ao desconhecido; que se cultive uma intimidade que respeite a privacidade. Distância e comunhão alternam, ou sucedem-se em contraponto. O desejo resiste ao confinamento, e o compromisso não tem de engolir toda a liberdade.” A autora sugere um exercício que ajuda a perceber esta gestão: “– Quero que inspire profundamente e que retenha o ar nos pulmões o máximo que conseguir – peço. O oxigénio fresco rapidamente dá lugar ao dióxido de carbono, forçando-o a expirar. A princípio, a sensação de expirar é maravilhosa, mas passados alguns momentos anseia por novo oxigénio. – Não pode escolher entre inspirar ou expirar – explico –, tem de fazer ambas as coisas. O mesmo acontece com a intimidade e a paixão. – Explico que a tensão entre segurança e aventura é um paradoxo a gerir, não um problema a resolver. É um quebra-cabeças. – Consegue ter consciência de cada um dos polos? Precisa de cada um deles em alturas diferentes, mas não pode ter ambos ao mesmo tempo. Consegue aceitar essa realidade? A questão não se resume a “ou isto, ou aquilo”; é antes uma situação em que se obtém os benefícios de cada um sem deixar de reconhecer as limitações dos dois. É um fluxo e refluxo.” Como diz Anaïs Nin, citado pela autora deste livro: “O amor nunca morre de morte natural. Morre por não sabermos reabastecer a sua fonte.” Socialmente parece haver uma expectativa de evoluirmos linearmente ao longo do tempo; vendem-nos a ideia de que é suposto estarmos sempre a crescer e a melhorar. Na prática isto não acontece, não evoluímos ou melhoramos de forma linear, temos altos e baixos, tendemos a oscilar. O problema é que, perante a expectativa, irrealista e eu diria mesmo que errada, de que o saudável seria melhorarmos de forma linear, quando vemos alguém mais em baixo, depois de um período em que se tenha sentido melhor, conotamos este “baixo” como um retrocesso, julgamos que a pessoa está a piorar, e explicita ou implicitamente passamos-lhe esta mensagem, mostramo-nos preocupados e desanimados com o seu estado de saúde mental. Por sua vez, os que voltam a sentir-se em baixo, pelas suas próprias expectativas e o desânimo que lêem nos outros, sentem uma grande frustração e desmoralização, sentem-se a falhar; e aí sim, com o acréscimo de toda a culpa associada, acabam por estagnar ou cristalizar cada vez mais nos seus esquemas problemáticos e desadaptativos; acabam por desistir de lutar. Na realidade, evoluímos sim, mas num movimento ondulatório, como o que ilustro na figura abaixo: Se analisarmos com cuidado, percebemos que temos altos e baixos sim, mas que também os baixos estão em processo de melhoria, tendem a ser cada vez menos baixos, oscilamos mas num movimento ascendente.
Se soubermos naturalizar estes baixos e reconhecer e reforçar o progresso que está a ser feito, favorecemos o ânimo e a coragem das pessoas para continuarem a lutar e a crescer, e prevenimos uma desmoralização desnecessária que pode bloquear ou atrasar este processo. Na realidade, mesmo o conceito de evolução linear em termos estatísticos, é uma mera redução dos pontos oscilantes ao longo do tempo à sua tendência de crescimento – a tendência é uma evolução linear positiva, mas o processo em si é oscilante. Não me querendo alongar em demasia, gostaria ainda de acrescentar uma consideração importante, é que do meu ponto de vista, na realidade esta evolução em onda ascendente é mais produtiva do que seria uma evolução estritamente linear. Esta evolução ondulatória permite-nos ensaiar sucessivamente formas mais eficazes de lidarmos com os “baixos” e consolidar as nossas conquistas perante os desafios mais dolorosos. Numa evolução estritamente linear não teríamos a possibilidade de perceber e treinar como lidar com os “baixos”, e num futuro em que eles voltassem a surgir, estaríamos menos capazes de lhes reagirmos de forma positiva e eficaz. É na possibilidade de treinarmos como lidar com os “baixos”, que a diferença para os altos vai diminuindo e nos tornamos mais sólidos e consistentes na capacidade de lidar positiva e eficazmente com os desafios que a vida nos coloca. Não desmoralize com os seus "baixos" nem com os dos outros, acolha-os e estimule que sejam aproveitados para continuar a crescer. (uma reflexão a partir do Lobo das Estepes de Hermann Hesse)
Recentemente li o “Lobo das Estepes” do Hermann Hesse, que retrata com uma profundidade e uma clareza a sensação de dualidade que vários pacientes trazem entre um lado humano e um lado supostamente de animal bravio e indomável – o lado lobo. Esta dualidade, em que frequentemente a sensação interior é de o lobo suplantar tendencialmente o humano, é vivida com grande angústia, com uma grande falta de amor-próprio e de amor à vida. Nesta dualidade, cada um dos lados condena e rejeita o outro, nenhum realmente se compreende, portanto quando surge o lado humano, mais social e delicado, o lado lobo arreganha os dentes, ridiculariza, destrói a experiência de envolvimento; e quando surge o lado lobo, que se zanga e se ressente ferozmente das injustiças a que se sente sujeito, o lado humano vem e julga, critica, invalida a experiência interior. É a tensão entre não conseguir ser feliz nem como humano nem como lobo, já que se por um lado se rejeitam um ao outro, também não deixam nenhum viver sem a presença crítica do outro. A sensação é de alienação, de serem lobos incapazes de viver em contexto humano, mas suficientemente humanizados para também não se conseguirem suportar enquanto lobos. Esta dualidade “condena” a uma incapacidade de sentir satisfação consigo e com a vida, a inteligência e o entendimento das coisas não se faz acompanhar da capacidade de se experimentar, de se viver, com menos seriedade e mais leveza. Esta condenação é fruto por um lado desta crítica, desta falta de aceitação do que se é e das ambiguidades do que se sente, e por outro desta categorização dicotómica entre bom e mau, humano e selvagem, que não contempla variações positivas do lobo e negativas do humano, nem outros lados, outras facetas, ou que, quando as reconhece, procura imediatamente encaixá-las numa destas duas possibilidades – bom/humano ou mau/selvagem, e perde o poder enriquecedor e transformador de nos contemplarmos na nossa totalidade e podermos brincar com os nossos vários lados, organizarmo-nos e regorganizarmo-nos a cada momento como nos aprouver, como a cada instante nos fizer sentido e nos quisermos experimentar. Como tão bem nos mostra Hermann Hesse no livro, a capacidade de retirar satisfação de nós próprios e da vida implica recuperarmos e alimentarmos o nosso lado curioso e brincalhão, em que cada um dos nossos lados (bem mais do que dois) em vez de julgar os restantes vai curioso tentar percebê-los e, em jeito de brincadeira, vai-se explorando em combinação com eles, integrando as várias peças num todo mais coerente mas também flexível, com espaço para a cada momento retirar umas, integrar outras, transformar outras ainda. Citando Hermann Hesse no livro: “Isto é a arte da vida (…) Poderá de futuro conferir forma e animação ao jogo da sua vida, emaranhá-lo e enriquecê-lo como bem lhe aprouver, tudo está na sua mão”. A ideia de podermos depender tende a ser conflituosa, se por um lado o desejamos, também tendemos a temê-lo com muita força, num misto de medo de nos perdermos a nós próprios e/ou de sufocarmos o outro com as nossas necessidades.
Tenho-me apercebido com os meus pacientes que é difícil para muitos distinguirem a dependência negativa/sufocante da dependência positiva, que promove a ligação e nos faz sentir próximos e acompanhados. Esta indiferenciação fá-los temerem constantemente sufocar o outro, mesmo quando os seus movimentos de aproximação e de conexão são perfeitamente saudáveis e agradáveis ao outro de receber. Curiosamente, o que tenho percebido entretanto é que, ao contrário do que a lógica nos faria crer, tornamo-nos patologicamente dependentes quando ao longo da nossa história não recebemos dos outros o que precisávamos – é muitas vezes perante “outros” negligentes e não responsivos que tendemos a depender negativamente, sempre à espera do dia em que nos vão dar o que precisamos, sempre a esforçarmo-nos um bocadinho mais para o receber. Perante “outros” responsivos, capazes de ir ao encontro das nossas necessidades, a dependência é no fundo ligação; a necessidade fica imediatamente satisfeita, não precisamos exigi-la, e isso dá-nos segurança e liberta-nos, é um colo que sabemos que está sempre lá (ou que reaprendemos que podemos confiar), perante o qual não precisamos estar de vigia, ele não vai fugir, ele vai estar lá quando nós precisarmos e ele puder. E perante este cenário, nem precisamos de deixar de ser nós próprios, nem precisamos sufocar os outros, contamos simplesmente com eles; ligamo-nos a eles e permitimos-lhes ligarem-se a nós. Às vezes ficamos tão presos nas nossas cabeças que nos esquecemos de escutar e usar o nosso corpo, de nos descobrirmos e nos expressarmos através do movimento que ele nos permite.
E este equilíbrio entre o pensar e o sentir/agir é essencial para uma vivência mais integrada e saudável de nós mesmos, tanto nas relações connosco próprios como nas relações com os outros. O ideal é o corpo receber informação/estímulos (sentir), que o cérebro ajuda a dar significado/coerência (pensar), para novamente o corpo entrar em acção e responder de volta para o mundo (agir). Se esta cadeia é interrompida ou rigidificada nalgum ponto, passamos a ficar estagnados, bloqueados, a vida deixa de fluir. É essencial primeiro estarmos atentos ao nosso corpo, percebermos como nos sentimos face às coisas; para depois pensar sobre o que estamos a sentir, e é muito importante que o pensamento seja guiado pela emoção, se for apenas no abstracto ou em negação ao que estamos a sentir vai ser improdutivo; para depois de dado significado, o corpo voltar novamente à acção, desta vez para enviar mensagens para o exterior, em resposta ao estímulo percepcionado. Dançar, por exemplo, é uma excelente forma de treinar esta cadeia. Experimente o seguinte exercício: De pé, ponha uma música do seu agrado a tocar, apure os seus sentidos e preste atenção ao seu corpo, como é que a música mexe com ele, que sensações desperta… Deixe-se ficar um tempo aqui, e experimente depois incluir a cabeça neste processo, mas não é um pensar abstracto, desconectado do corpo, é simplesmente estabelecer ligações, perceber para onde é que estas sensações o levam, que memórias e imagens lhe despertam, é dar significado/nome/sentido a estas sensações e emoções… E daqui comece a mexer o seu corpo como ele pede para ser mexido, expresse estas sensações e emoções de que se apercebeu ao dar-lhe atenção, mexa-o ao som da música e no fundo ao som de si, é a si que se está a expressar. Deixo-o então com a sua música e com o seu corpo, liberte-se e deixe-se fluir. Tanto nas relações amorosas como nas relações de amizade, surge frequentemente um problema, muitas vezes subtil e pouco consciente, sobre o papel que cada um desempenha na relação no que toca cuidar e/ou ser cuidado.
Muitas vezes sem querer e sem nos apercebermos, cristalizamo-nos num destes papéis – ou somos os cuidadores, ou somos os que recebem cuidado; em vez de fluirmos entre estes dois polos e termos relações equilibradas entre o dar e o receber. Vou debruçar-me especificamente naqueles de nós que temos tendência a adoptar a postura do cuidador. Quais são as características internas do típico cuidador? O típico cuidador tem geralmente, ainda que de forma inconsciente, uma ideia de que só cuidando dos outros e procurando ir ao encontro das necessidades dos outros é que pode aspirar a receber o amor deles. Há uma postura de dar para se sentir merecedor de receber. No entanto, sem querer e sem se aperceber, tendencialmente não sabe receber e, ou fica muito desconfortável e a sentir-se muito vulnerável quando alguém tenta inverter os papéis e devolver-lhe cuidado, ou adopta uma postura de auto-suficiência, que passa a mensagem “não preciso de nada, eu resolvo-mo, nem tentes cuidar de mim”. Quais são as consequências da rigidificação neste papel? Por um lado, habitua os outros ao seu cuidado, cria uma imagem de cuidador que é difícil desfazer, tanto aos olhos dos outros, como no próprio reportório. Com esta imagem de cuidador, sempre disponível para o outro, passa também a imagem que está sempre bem ou que se resolve com facilidade, que é auto-suficiente, sabe bem cuidar de si. Isto acaba por trazer uma sensação imensa de solidão, de desamparo, já que é muito o cuidado que recebemos, e que nos permitimos receber, que nos faz sentir acompanhados, ligados aos outros, e confiantes em nós mesmos. Por outro lado, abre as portas ao ressentimento, porque por maior que seja a sensação de auto-suficiência, somos todos seres eminentemente sociais e relacionais, nalgum momento vai sentir com força a mágoa de não receber na mesma medida em que dá, sem se aperceber que há um lado em que foi o próprio que criou esta imagem de cuidador auto-suficiente, e que reforça esta ideia pela dificuldade em receber e alimentar o cuidado dos outros para consigo. Sair deste estilo não costuma ser fácil, implica um trabalho muitas vezes longo de ir tentando equilibrar o dar e o receber – aprender a dar menos, aprender a receber mais, e acreditar que se merece receber e que se vai receber, assim que se disponibilizar verdadeiramente para tal. Não há problema algum em cuidarmos dos outros, desde que nos saibamos também deixar cuidar. Há uns tempos, no seguimento de ter escrito o texto Sobre a ansiedade, pediram-me para escrever mais especificamente sobre o medo de falar em público, que é uma forma de ansiedade social.
O que é a ansiedade social? A ansiedade social é um padrão persistente de desconforto e nervosismo acentuado em contextos sociais; podem ser contextos de interacção, ou contextos de desempenho, como o caso de falar em público. A emoção comumente associada à ansiedade social é a vergonha, o medo de ser ridículo ou desadequado, e de ser julgado e criticado pelos outros. A pessoa com ansiedade social tende a ter uma imagem de si como socialmente desadequada ou sem valor, como uma fraude que não merece a atenção ou o reconhecimento dos outros. De onde vem e como é que é mantida a ansiedade social? Esta sensibilidade extrema à crítica e a ser visto como desadequado ou impostor, advém tipicamente de na infância ter recebido mensagens críticas de estar a ser vergonhoso ou não estar a ser suficientemente bom; mensagens estas que podem ter sido mais explícitas ou mais implícitas. A pessoa cria portanto um modelo de si como alguém defeituoso ou inferior e esta imagem prolonga-se pela sua vida e é frequentemente reforçada pela própria pessoa sem que ela se aperceba disso. O que geralmente acontece é que, para lidar com esta ansiedade, desenvolve estratégias que aliviam a curto-prazo, mas que alimentam a imagem negativa de si a médio-longo prazo. Por exemplo, a pessoa tende a preocupar-se excessivamente com o seu desempenho, no sentido de evitar falhas que possam ser julgadas pelos outros, e neste processo perde o contacto com a sua experiência no momento e o conteúdo do que quer apresentar, no caso de uma comunicação em público, e passa a observar-se de fora, a focar-se na imagem que estará a passar aos outros. Isto naturalmente desconcentra-a da tarefa em si e pode inclusivamente prejudicá-la, reforçando a ideia de que se é incompetente ou inferior. Outro exemplo é o processo de evitamento: face ao medo de falar em público, evita fazê-lo, mas ao evitá-lo perde a possibilidade de desconfirmar a sua crença negativa de si e reforça a ideia de que não é suficientemente competente. Ainda um outro, a pessoa com ansiedade social tende a tentar passar a melhor imagem possível de si, com a ideia de que qualquer falha, por pequena que seja, vai ser alvo de crítica e humilhação; mas ao não expor os seus lados mais frágeis e vulneráveis fica sempre com a sensação de estar a ser uma fraude, e à custa disso tem dificuldade em acreditar e integrar o feedback positivo dos outros, sentindo que eles só têm uma boa imagem de si porque não a conhecem verdadeiramente. Como é que se quebra o ciclo de ansiedade social? Sucintamente há dois focos, há o foco dos comportamentos que contribuem para manter a ansiedade social, e há o foco das experiências precoces, na infância, que contribuíram para esta vergonha excessiva e esta imagem de si como defeituoso e inferior. Para o primeiro foco, é preciso desafiar estes comportamentos: refocar na tarefa em vez de se estar a focar exageradamente em si, combater o evitamento e expor-se de facto às situações temidas, e aprender a vulnerabilizar-se perante os outros, percebendo que todos temos defeitos e não nos tornamos obrigatoriamente alvo de crítica e ridicularização por eles. Para o segundo foco, o trabalho é muito de descobrir internamente o que o tornou tão vulnerável à crítica e à ridicularização, que experiências contribuíram para esta imagem tão negativa de si, no sentido de poder desfazer esta imagem e contribuir para um maior à vontade e maior satisfação nas interacções e desempenhos sociais. Naturalmente que este trabalho não é fácil sozinho, caso sinta que a ansiedade social prejudica seriamente a sua vida pessoal ou profissional e a sua satisfação com os seus relacionamentos e interacções, invista num trabalho psicológico que o possa ajudar a recuperar ou a descobrir uma forma mais tranquila e satisfatória de estar consigo próprio e com os outros. Só se deprime quem não se deixa entristecer. António Branco Vasco Do meu ponto de vista, a depressão equivale a um processo de desligamento de si próprio e do mundo; simbolicamente é um fechar a porta, um deixar de acreditar, um sentir que não vale mais a pena lutar.
Neste sentido, nas origens da depressão, especialmente a mais debilitante e crónica, tendem a existir experiências dolorosas prolongadas ou muito repetidas, e esforços de resolução dos problemas fracassados, ou respostas frequentes de invalidação e desqualificação dos outros, que deixam a pessoa a sentir-se impotente ou incompetente e muito desesperançada e desamparada. A certa altura, aceder a estas experiências ou memórias dolorosas, sem conseguir recuperar ou mobilizar outras mais positivas e vitalizantes, torna-se demasiado doloroso e angustiante, e é como se se escolhesse então, ainda que de forma inconsciente, deixar de sentir, cortar o contacto consigo e com o mundo, deixar de “viver”. Em terapia, o que procuramos fazer perante estes cenários, é ajudar a pessoa a reabrir-se à experiência, a recuperar o contacto consigo e com o mundo, num ambiente seguro e protector, que favoreça que ela se permita voltar a sentir, e ao mesmo tempo aceder e activar recursos internos ou externos, que a ajudem a dar um sentido mais produtivo e menos incapacitante a estas experiências dolorosas passadas ou presentes. O objectivo é também combater a sensação de desamparo e ajudá-la a perceber que, ainda que não possa apagar o seu passado, não precisa continuar a viver nele no presente e pode construir, mesmo a partir dele, uma narrativa diferente para o seu futuro. Talvez lhe pareça estranha a frase “Só se deprime quem não se deixa entristecer”, mas na realidade, ao permitir-se entristecer, ou sentir qualquer uma das suas emoções mais dolorosas, num ambiente seguro e validante, está a abrir a porta para processar e arrumar as suas experiências dolorosas e integrar na sua vivência emoções e experiências positivas que o ajudam a dar um sentido menos drástico e menos incapacitante às negativas. Não feche a porta a si próprio, permita-se sentir! |
Autora
Joana Fojo Ferreira Acompanhe as atualizações nas redes sociais
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